sábado, 27 de fevereiro de 2010

Artigo Teológico: A dimensão profética da homilia







A dimensão profética da homilia
Autor: Leandro Luis Bernardes
Orientador: Sergio Francisco Valle
Resumo
A abordagem sobre a dimensão profética da homilia visa o resgate às origens da tradição homilética da Igreja, proporcionada pelos Santos Padres, com seu cunho bíblico, espiritual, mistagógico e social. Esse artigo tem o objetivo de destacar a homilia como um exercício profético, isto é, anunciar a mensagem evangélica que é atualizada na liturgia, dentro do contexto celebrativo, e denunciar o pecado e as injustiças presentes em todos os âmbitos da vida humana. Ao mesmo tempo, procura lançar os fundamentos teológicos do exercício homilético e apontar a doutrina do magistério eclesial, em conssonância com os pronunciamentos do papa Bento XVI e as resoluções do documento de Aparecida.
Palavras-Chave: Homilia. Ministério. Patrística. Pregador. Profético.
Introdução
A homilia é um verdadeiro exercício profético. Por meio desta ação litúrgica, o ministério da Palavra, resgatado pelo Concílio Vaticano II, é dinamizado pela atuação do ministro, que exerce este carisma peculiar conferido pelo sacramento da ordem. A homilia possui uma dimensão profética, isto é, está continuamente, em cada celebração litúrgica (principalmente a eucaristia), atualizando a mensagem evangélica. Essa tarefa profética não é uma mera reflexão, levando as pessoas a uma compreensão superficial, mas um verdadeiro ecoar da Palavra de Deus para dentro do momento de hoje; por isso é profética: anuncia e denuncia. A dimensão profética da homilia não é fruto recente, existe há dois milênios, desde o anúncio do Evangelho, por Cristo e posteriormente pelos apóstolos, passando pelos Santos Padres da Igreja e chegando a nós hoje, com toda a força e vivacidade das origens cristãs.
1. O que é homilia?
A homilia teve realce particular no Concílio Vaticano II, que a concebe como “parte integrante da própria liturgia” (SC 52, p.54). Mediante a renovação eclesial fomentada pelo Concílio, o anúncio da Palavra de Deus ganhou novos fundamentos, um verdadeiro sopro do Espírito, não no sentido de introduzir meras novidades, mas justamente por trazer à tona um movimento de resgate das fontes. Voltar à originalidade do cristianismo foi marcante para o impacto eclesial gerado pelo Concílio; sair de uma cristalização litúrgica e celebrativa que durara séculos para a autenticidade e vivacidade das origens cristãs.
Emergindo do movimento de reforma e continuidade, a homilia ocupa espaço fundamental no contexto da celebração eucarística, pois nela, “são apresentados do texto sagrado, os mistérios da fé e as normas da vida cristã” (SC 52, p.54). A Sacrosanctum Concilium destaca essa natureza da homilia, isto é, situa o exercício homilético de acordo com a importância da Sagrada Escritura na celebração litúrgica, pois “dela se extraem os textos para a leitura e explicação na homilia” (SC 24, p.45). Pode-se afirmar que a homilia é um exercício do ministério da Palavra confiado pelo próprio Cristo à sua Igreja, “é o ato de tomar a palavra presidencial no decorrer de uma celebração e ordinariamente depois das leituras bíblicas” (DELLA TORRE, 1992, p.556). A homilia “é uma pregação litúrgica, não só na eucaristia, como em todos os sacramentos, na liturgia das horas e nas vigílias” (MALDONADO, 1990, p.204).
A etimologia do vocábulo, originário do grego Όμιλέω, significa reunião ou conversa familiar e coloquial, “reflete uma experiência humana de estar em companhia, de ajuntar-se a, de conversar, de ter e estar num relacionamento profundo, de frequentar as pessoas” (LIBANIO, 2005, p.51); a homilia assume justamente esse caráter familial expresso no tom da linguagem. “No sentido comum e habitual a homilia é a explanação que se faz durante a Missa ou outra celebração litúrgica, a partir do texto litúrgico que tenha relação com o mistério que se celebra e venha de encontro às necessidades dos ouvintes” (MOESCH, 1980, p.132).
Homilia não é sermão, não é palestra, nem aula de teologia, nem outro discurso, senão “parte integrante da celebração e deve servir de ligação entre a Palavra proclamada e a celebração da eucaristia e conduzir a ela” (NOCENT, 1986, p.229). É a ponte entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística, “formando ambas as partes um só ato de culto, uma só celebração sacramental” (BECKHÄUSER, 2007, p.142). “A homilia é o prolongamento da Palavra da Escritura para dentro do momento de hoje e para a comunidade presente em ressonância com o tempo litúrgico e em conexão com a celebração litúrgica com tonalidade espiritual, orante e não doutrinal ou moralizante” (LIBANIO, 2005, p.51).
É importante ressaltar que a homilia possui uma linguagem litúrgica, isto é, um emprego litúrgico dos textos escriturísticos. Se estes elementos litúrgico-teológicos não estiverem presentes, o discurso se revestirá de muitas facetas, no entanto, não será verdadeiramente o exercício profético realizado pela homilia.
A atividade homilética é executada em consonância com a Palavra de Deus, com a sagrada Tradição e com o Magistério eclesial; esses três pilares fundamentais norteiam a homilia, proporcionando segurança e precisão.
Assim, a homilia é a explanação da Palavra de Deus proclamada na liturgia a partir de uma linguagem familiar, que diz respeito ao mistério celebrado e vivido, com o objetivo de evocar o dinamismo da fé e suscitar nos cristãos a vivência atual das exigências evangélicas. É um recurso pelo qual a Igreja atualiza a mensagem salvífica e alimenta a vida espiritual dos fiéis, expondo com firmeza, convicção e clareza os mistérios da fé.
1.1 Finalidade da homilia
A homilia não tem a finalidade de transmitir um assunto de doutrina, de moral, de exegese, de psicologia ou de pedagogia ou mesmo de catequese, embora esses aspectos possam estar presentes de algum modo. Todavia, a real finalidade da homilia é conduzir a assembléia ao aprofundamento da Palavra de Deus que é proclamada na celebração eucarística, ou seja, levar as pessoas a adentrar-se no mistério celebrado; é “despertar a piedade e a interiorização do mistério que se celebra” (LIBANIO, 2005, p.62).
Portanto, a atividade homilética possui uma finalidade mistagógica, que irrompe numa aplicação espiritual em benefício dos fiéis. Pode-se dizer que “a homilia tem por finalidade colaborar com Deus para que sua Palavra se encarne no hoje da vida dos fiéis” (BECKHÄUSER, 2007, p.143). É um verdadeiro serviço (diakonia) à assembléia, invoca-se “para este serviço o aspecto profético da homilia: descobrir para o bem de todos o que nos diz hoje a Palavra” (D´ANNIBALE, 2005, p.181). Frente aos desafios atuais, principalmente da crescente secularização e descrédito em relação à experiência religiosa cristã, o objetivo primordial da homilia é fomentar a espiritualidade, dada a enorme carência de espiritualidade na sociedade. O papel da homilia consiste em confrontar a vida cristã com o Evangelho e assegurar o caráter profético autêntico do cristianismo, alimentando a espiritualidade e a mística cristã.
Instrumento eficaz, a homilia pode tanto ajudar a manter o status quo, tornando-se apenas um adereço ou mero aparato classista, retroalimentando as ideologias dominantes, como pode ser efetivamente um exercício profético que traz à tona a originalidade e radicalidade cristã. Pode conformar ou confrontar: conformar a Igreja como serva de um sistema político-social voltado à opressão contínua dos pobres, mesmo que utilize certos discursos e práticas dissimulados; ou confrontar esse sistema injusto com a proposta evangélica da “promoção humana e a autêntica libertação cristã” (DA 26, p.23).
De acordo com as resoluções do Documento de Aparecida e como afirma o Papa Bento XVI, a fé cristã “não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem tampouco um sistema econômico, mas a fé é o rico patrimônio da América Latina, a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento desta esperança” (DA, p.279). A finalidade da homilia é fazer o testemunho cristão eclodir profeticamente no mundo.
A Instrução da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos Redemptionis Sacramentum orienta para a finalidade autêntica da homilia, emanando a seguinte diretriz:
Ao fazer a homilia, procure-se iluminar, em Cristo, os acontecimentos da vida. Faça-se isto, sem dúvida, de tal modo que não se esvazie o sentido autêntico e genuíno da Palavra de Deus, por exemplo, tratando só de política ou de temas profanos, ou tomando como fonte idéias que provém de movimentos pseudo-religiosos de nossa época (RS 67).
A prática homilética possui uma característica de continuidade com a tradição apostólica da Igreja, ou seja, a explicação das Escrituras deve estar em confluência com o rico depósito da fé (depositum fidei). A atividade homilética é exercida de acordo com uma continuidade ininterrupta, uma interpretação que leva em consideração a tradição homilética dos Santos Padres e Doutores da Igreja, grandes homiliastas, logicamente com uma linguagem compreensível para o homem moderno, como ensina o Papa Bento XVI (2006): “Os Santos Padres falam dos homens e para os homens do seu tempo. Mas o que dizem refere-se de modo novo também a nós homens modernos”. Pode-se chamar esse movimento presente na teologia como “hermenêutica da continuidade”<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->.
1.2 Fundamentos bíblicos da homilia
A Bíblia documenta também as formas orais da fé que a precederam. A homilia mergulha suas raízes no povo de Israel e faz parte dessa tradição oral, tendo como lugar privilegiado o culto prestado a Javé. “Estas formas orais fazem parte da tradição ou da memória viva porque sempre atualizada em novos contextos e situações históricas” (HOMEM, 2007, p.90). Os exegetas reconhecem que o culto é o lugar da formação das tradições orais e que os escritos “muitas vezes se destinavam ao culto, lugar de interpretação das tradições orais” (DELLA TORRE, 1992, p.556). Para o povo judeu a Palavra proclamada na assembléia era sinal da presença do Senhor, era estabelecido um verdadeiro diálogo do povo com Deus. O Novo testamento continua com a tradição homilética sinagogal, encontrando nela seus antecedentes, porém, com base na interpretação das Escrituras à luz do evento pascal de Jesus, surge um novo tipo de pregação.
1.2.1 Antigo Testamento
Com a Aliança no Sinai, que “já é criação nova de um povo que o exílio havia desarticulado” (NOCENT, 1986, p.209), é selado o pacto estabelecido por Javé por meio da aspersão com o sangue e o banquete cultual. No entanto, esse pacto é realizado com a força da comunicação verbal da Palavra, dita por Moisés ao povo e posteriormente escrita e lida: “Este é o sangue da Aliança que Javé fez convosco, através de todas essas cláusulas” (Ex 24,8). “Referem-se às prescrições morais e rituais, especialmente o Decálogo que se insere no Código da Aliança ou da Santidade do Povo (Ex 20-23)” (DELLA TORRE, 1992, p.556). A Aliança assim estabelecida foi selada com o sacrifício do sangue e concluída por meio das palavras ouvidas.
Celebrando a Aliança na assembléia de Siquém, Josué reúne o Povo para relatar a história de Israel como iniciativa salvífica de Javé (Js 24,1) e introduz a fé javista para o povo que ainda não tinham ouvido falar dela. Josué prega e anuncia o novo pacto selado e celebrado, fazendo com que todos os componentes da assembléia se tornem parte do Povo de Deus. Percebe-se a evidente relevância da palavra, seja pelo discurso convincente de Josué, seja pelo povo que responde dialogicamente: “É a Javé que serviremos” (Js 24,21). A escuta da Palavra supõe a tomada de posição concreta e a Aliança é definitivamente ratificada por meio do diálogo do povo com Javé (Js 24,16-24).
Encontra-se também, no livro de Esdras, a constatação do que era concretamente a assembléia de culto e a presença da homilia, por ocasião da volta do exílio da Babilônia: “Todas as manhãs, Esdras, sobre um estrado, proclama uma parte da Lei (Esd 8,1-4); em seguida explica o que foi proclamado: “Eles liam no livro da lei de Deus em trechos distintos e com explicações do sentido e, assim, faziam compreender a leitura” (Esd 8,8). O povo, de pé, ouve a proclamação e aclama, com as mãos levantadas, gritando: “Amém, Amém!” (Esd 8,3.6.7). Posteriormente, depois da confissão dos pecados e a oração de agradecimento, o povo se afastava contente para a partilha da comida e bebida. Aqui é evidente a presença da atividade homilética dos levitas durante a proclamação da Palavra de Deus no culto judaico pós-exílico. Essa atividade oral é chamada de midraxe: “o midraxe era a explicação do que tinha sido proclamado, com uma aplicação espiritual para a assembléia” (NOCENT, 1986,p.210).
Há uma coletânea de discursos homiléticos no Livro do Deuteronômio. As conversas tomam em consideração sentimentos e pensamentos do povo: “Talvez digas em teu coração: Estas nações são mais numerosas do que eu, como poderia conquistá-las? Não deve ter medo delas! Lembra-te bem do que Javé, teu Deus, fez ao Faraó e a todo o Egito...” (Dt 7,17-18). Essas exortações se fundamentam na memória da história salvífica: “Amanhã, quando teu filho te perguntar: Que são estes testemunhos e estatutos e normas que Javé, nosso Deus, vos ordenou? dirás ao teu filho: Nós éramos escravos do Faraó, no Egito, mas Javé nos fez sair do Egito com mão forte” (Dt 6,20). O patriarca é que toma a palavra, é ele que faz a homilia; percebe-se a continuidade da tradição, atualizada de pai para filho, com a finalidade da preservação da identidade do Povo de Israel.
As liturgias eram oportunidades de se tomar a palavra. Os profetas pregavam em assembléias cultuais, muitas vezes em contraste com os sacerdotes oficiais. Amós toma a palavra no “santuário do rei e no templo do reino” (Am 7,12-17); Jeremias fala abertamente diante dos sacerdotes e de todo povo que estava na casa de Javé (Jr 28,5), contra Ananias, denunciando-o como profeta da desilusão e profetizando sua morte iminente (Jr 28,15-17). Tendo sido impedido de ir ao templo profetizar, Jeremias pede ao seu secretário Baruc escrever as Palavras do Senhor para serem ouvidas pelo povo em um tempo de jejum: “lerás para o povo, do rolo que escreveste, ditado por mim, todas as palavras de Javé, na Casa de Javé, no dia do jejum” (Jr 36,5-6).
Nos Salmos, os salmistas dão testemunho que o Senhor neles operou: “Esperei, ansiosamente, por Javé; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito” (SL 40,2); ou, expressam ao povo instruções narrativas ou sapienciais e exortações de tom homilético.
Por meio dessa atividade oral, “os chefes, os sacerdotes, os profetas, os escribas, os sábios ou os próprios fiéis têm a consciência de que estão transmitindo a Palavra de Deus, amadurecida pela recordação meditada dos acontecimentos salvíficos e pelo confronto com novas situações, para comunicar que o Senhor atualmente opera e diz” (DELLA TORRE, 1992, p.557).
1.2.2 Novo Testamento
O evangelista Marcos evidencia a homilia pronunciada por Jesus na sinagoga de Cafarnaum, no início de seu ministério público (Mc 1, 21-22), é o ensinamento novo, dado com autoridade, diferente dos escribas. S.Lucas relata o início da pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré, quando Jesus se levanta para fazer a leitura do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim porque ele me ungiu para evangelizar os pobres” (Lc 4,16-20); e conclui : “Hoje se cumpriu, aos vossos ouvidos, essa passagem da Escritura” (Lc 4,21). O evangelista Lucas também apresenta o Ressuscitado no caminho para Emaús, explicando aos dois discípulos o sentido da cruz: “Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,26). Os discípulos reconhecem Jesus ao revelar as escrituras e ao partir o pão entre eles: “Não ardia o nosso coração, quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32). É importante notar que “antes da redação dos textos evangélicos e neotestamentários, muitas tradições orais se formaram em situações cultuais” (DELLA TORRE, 1992, p.557), por isso, a íntima relação entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística. Essa passagem dos discípulos de Emaús é nitidamente uma celebração eucarística das primeiras comunidades da Igreja primitiva. Não é fácil isolar as partes homiléticas contidas no NT, mas são incontestavelmente presentes e reconhecem-se verdadeiras homilias na primeira epístola de Pedro e na carta aos hebreus.
Esses são os modelos de homilia eclesial deixada por Jesus; o método é seguido pelos apóstolos “que muitas vezes se servem da homilia sinagogal para anunciar a boa nova (At 13, 15) e preparam os seus discursos com base na interpretação das Escrituras à luz do evento pascal de Jesus” (DELLA TORRE, 1992, p.557). Paulo e seus companheiros entram na sinagoga de Antioquia da Pisídia e o apóstolo faz a homilia depois da proclamação da Palavra e anuncia Jesus como redentor (At 13,16-42); enquanto Paulo pregava, durante a “fração do pão” em Trôade, um adolescente, que estava sentado no peitoril da janela adormeceu e caiu do terceiro andar, Paulo o reanima e continua pregando até o amanhecer (At 20,7-11). Nas comunidades paulinas a comunicação oral era realizada de forma discursiva e dialógica. Paulo reconhece a maneira participativa dos cristãos conduzirem as reuniões da Igreja em Corinto; aceita que tanto o homem como a mulher orem e profetizem (1Cor 11,4-5); intervém para que tudo se processe com decoro e ordem (1Cor 14-40); dá testemunho da pluralidade de carismas e de formas de expressão: “Quando estais reunidos, cada um de vós pode cantar um cântico, proferir um ensinamento ou uma revelação, falar em línguas ou interpretá-las, mas tudo se faça para a edificação” (1Cor 14,26).
Devido à intensa atividade carismática da Igreja em Corinto, os carismas da palavra são numerosos (1Cor 12,8ss), assim como os ministérios ligados à palavra (apóstolos, profetas, evangelistas, mestres). Pode-se afirmar, de acordo com a diversidade carismática anunciada por Paulo, que a homilia assume aqui seu caráter profético, “a palavra apostólica, que realiza a presença do Senhor que fala aos seus discípulos, é igualmente profética, já que a memória do Senhor Jesus é não apenas anunciada, mas ainda interpretada e atualizada” (DELLA TORRE, 1992, p.558).
Eis o fundamento bíblico neotestamentário da dimensão profética da homilia, isto é, a homilia interpreta e atualiza profeticamente a Palavra de Deus. Se “Deus fala ao seu povo” (SC 33) mediante a homilia, pois o próprio Deus fala na boca do sacerdote, assim como falou pela boca dos profetas, esta é, portanto, uma ação profética.
1.3 A homilia na Tradição da Igreja
Durante os três primeiros séculos do cristianismo, encontra-se como homilia mais remota a segunda carta clementina, que segundo os estudiosos não é de autoria de Clemente, mas de Sotero, bispo romano. Essa valiosíssima relíquia da liturgia das comunidades eclesiais primitivas foi produzida antes de 150 d.C, talvez em Corinto: “Não pareçamos crentes e atentos somente quando os presbíteros nos admoestam, mas, depois de voltarmos para as nossas casas, recordemo-nos também dos preceitos do Senhor” (apud DELLA TORRE, 1992, p.558).
O conteúdo dessa antiga homilia descreve:
A exímia grandeza dos benefícios de Cristo, o qual atraiu mesmo os pagãos. Em sinal de reconhecimento, deve-se confessar a Cristo por meio das obras, temer a Deus mais do que aos homens, desprezar o mundo, não recear sequer o martírio. A graça do batismo obriga à penitência e à pureza corporal; embora o neguem os gnósticos, ressuscitará a carne (ALTANER, 1988, p.97).
Diversas outras exortações à penitência e à expectativa da glória futura concluem a primitiva homilia. Destaca-se entre as homilias mais antigas, a homilia de Melitão de Sardes sobre a Páscoa, cujo texto encontra-se na íntegra. É uma homilia destinada à Vigília Pascal, que seguia à leitura de Ex 12, ou seja, a páscoa judáica do êxodo do Egito, como tipo ou figura da redenção operada por Cristo (criação de Adão e a queda, o domínio do pecado, os vaticínios dos profetas, a morte e ressurreição de Cristo). A homilia possui um estilo retórico-semítico, criticado por Tertuliano.
O relato sobre a celebração da Eucaristia, atribuído a Justino, mártir no século II, expressa muito bem a presença da homilia no culto dos primeiros cristãos: “Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos” ( apud LH, p.626).
Inácio de Antioquia convida Policarpo de Esmirna a “fazer uma homilia contra os ofícios desonestos” (apud DELLA TORRE, 1992, p.558). A escolha de textos bíblicos adequados e as exortações, correções, repreensões divinas, foram preconizadas por Tertuliano, “quando os acontecimentos do tempo presente nos obrigam a recordar ou a aprender a conhecer uma coisa” (apud DELLA TORRE, 1992, p.558).
Nas principais festas, a homilia assumia caráter particular, como demonstram as homilias pascais do séc. II. Havia uma pluralidade de ministros da Palavra. A Didaqué privilegia aqueles que ensinam e relata a atividade de apóstolos, profetas, instrutores didascálicos ou doutores, ao passo que a Epístola de Barnabé se prolonga falando dos doutores que tem o dom da ciência para conduzir os fiéis, ajudando-os a penetrar mais profundamente no significado das Escrituras e a compreender as vontades divinas para vivê-las. Hermas, em sua obra O Pastor, descreve o profeta como “homem que possui o Espírito divino e vem a uma assembléia de homens justos que têm a fé do Espírito divino e fala à multidão como o Senhor quer” (apud DELLA TORRE, 1992, p.558). Era na assembléia que as funções carismáticas da Palavra gozavam de maior consideração, não havendo oposição entre carisma e instituição nas comunidades, apesar de abusos e dificuldades.
Foi Orígenes o grande responsável por conceber a homilia como explicação das Escrituras, para captar o seu sentido espiritual e obter orientações práticas. Foi ordenado sacerdote e possuia uma genialidade extraordinária, uma inteligência rara. Orígenes é considerado um dos maiores teólogos da história do cristianismo. Escreveu mais de duzentas homilias e sua principal preocupação era a edificação espiritual dos ouvintes: “Não é este o momento para um comentário minucioso; devemos edificar a Igreja e estimular, com explicações místicas (mysteria) e com o exemplo dos santos, os ouvintes preguiçosos e inertes (Homilias sobre o Gênesis 10,5. apud DELLA TORRE, 1992, p.559). Chega-se às explicações espirituais, por meio da homilia, a partir do mistério que é enunciado. Orígenes serve-se de uma ascese e mística de cunho cristológico, eclesial e sacramental; uma espiritualidade baseada no dogma.
1.3.1 A homilia na época patrística
A tradição homilética da Igreja é riquíssima, desenvolveu-se principalmente no período patrístico, que conta com uma maravilhosa tradição de homilias dos Santos Padres. A Instrução Geral sobre o Missal Romano evidencia a continuidade da tradição e o progresso dos estudos patrísticos:
A “norma dos Santos Padres” não reclama somente a conservação daquelas tradições que nos legaram os nossos antepassados imediatos; exige também que se abranja e examine mais profundamente todo o passado da Igreja e todos esses diversos modos pelos quais se exprimiu a única e mesma fé (IGMR 6-9).
Do séc. IV ao VI, grandes bispos dão forma oratória e conteúdo doutrinal à pregação homilética; nos Padres, existe um centro irradiador: o Mistério Pascal. Durante o período patrístico houve um grande crescimento teológico, uma época áurea na teologia, influenciando muito o desenvolvimento homilético. A atividade homilética dos Padres é o maior e principal paradigma da dimensão profética da homilia. Destes, o destaque para dois bispos orientais que exerceram seu ministério profético durante a época patrística: S.João Crisóstomo e S.Basílio Magno.
1.3.2 S. João Crisóstomo
João, que recebeu o apelido de Crisóstomo (boca de ouro), nasceu em Antioquia numa família de boa condição financeira, entre 344 e 354. Recebeu a formação grega clássica e aos 18 anos foi batizado. Foi eremita durante 6 anos, diácono em 381 e presbítero em 386. Teve a missão de pregar nas igrejas, o que lhe valeu a fama de ser o melhor dos oradores conhecidos, suas homilias:
duravam, às vezes, duas horas, não fatigavam seus ouvintes gregos por causa de sua excepcional exposição e seu vigoroso efeito oratório. Pareciam-lhes magistralmente vivazes pelo emprego de imagens e semelhanças, pelo nexo com situações concretas da época e digressões interessantes (ALTANER, 1988, p.326).
Feito bispo, patriarca de Constantinopla, sofreu perseguições, sendo deportado e exilado. É o autor da divina liturgia que é celebrada até nos dias de hoje pelos cristãos ortodoxos; foi “um grande profeta no meio de uma Igreja em grande parte comprada pela riqueza do Império” (COMBLIN, 2008, p.112).
São inúmeras suas homilias sobre textos bíblicos, especialmente os livros do Novo Testamento. Destaca-se a exegese tipológica, característica predominante dos Padres. “Crisóstomo segue o método antioqueno, prendendo-se ao sentido literal das Escrituras e com a preocupação contínua de atualizar a Palavra de Deus aplicando-a às diversas situações da comunidade cristã” (DELLA TORRE, 1992, p.559):
“Suas homilias são exegéticas, procurando explanar o sentido histórico dos textos, segundo os princípios da escola antioquena. Nenhum Padre da Igreja explicou o texto sagrado de maneira tão profunda e tão prática ao mesmo tempo; ainda hoje, suas homilias lêem-se não apenas com fruto e prazer, mas ainda gozam, do ponto de vista exegético, de plena aceitação, coisa que nem sempre se pode dizer dos sermões de outros Padres, inclusive Agostinho” (ALTANER, 1988, p.327).
João Crisóstomo refere-se frequentemente aos textos evangélicos sobre a pobreza, aplicando esses textos à sociedade na qual vivia. No meio de uma sociedade cristã, mas pagã nos seus costumes, ele expõe a mensagem evangélica. Em uma de suas homilias, João Crisóstomo interpela os ricos: “Mais uma vez vocês se colocam contra os que são espoliados! Não se fartam de devorar e engolir os pobres e eu não me canso de lançar-lhes isso em face” (apud COMBLIN, 2008, p.109).
E, numa homilia sobre o Evangelho de Mateus, profetiza:
Quem poderá descrever os negócios que se fazem com eles (trabalhadores), os tráficos vilipendiosos a que são submetidos, enquanto seus amos enchem lagares e celeiros à custa do trabalho e do suor daqueles infelizes, não lhes sendo consentido levar para casa nem uma parte ínfima. Todo o fruto se destina a encher seus tonéis de iniquidade e, a troco disso, pagam uma única moeda ao trabalhador (apud COMBLIN, 2008, p.111).
A dimensão profética, no sentido de denunciar as injustiças sociais, é levada ao extremo por João Crisóstomo, quando se depara com o sofrimento dos pobres. Diante de situações extremas, a homilia assume o verdadeiro papel profético que o próprio Jesus exerceu e que hoje se prolonga por meio da Igreja, é a voz profética que clama por justiça.
1.3.3 S. Basílio Magno
Basílio nasceu em Cesaréia da Capadócia por volta de 330. Era de uma família rica e de grande tradição cristã. Formou-se em retórica, mas logo recebeu o batismo e se tornou monge, indo ao deserto com os monges ascetas. É o responsável pelas regras monásticas no Oriente. Posteriormente foi feito bispo e é considerado como “o Grande”, devido seus ecritos e sua vasta rede de relações sociais. “Em contraste com a maioria dos Padres da Igreja grega, que pendem para o lado especulativo, Basílio revela em seus escritos um acentuado interesse pelas questões éticas e práticas da vida cristã” (ALTANER, 1988, p.294).
As homilias de Basílio tinham uma característica de diálogo, sua pregação homilética “promovia oportunidade para uma grande interação entre o pregador e os ouvintes. Também, quando tinha objetivos apologéticos e proféticos, Basílio proclamava através de uma forma homilética” (SIEPIERSKI, 1995, p.58). O bispo “não só anunciava a vontade de Deus para a sociedade humana, mas também denunciava todos os empecilhos criados pelos homens que impediam a sociedade de alcançar seus objetivos. A proclamação profética de Basílio era esforço para garantir a primazia do bem comum” (SIEPIERSKI, 1995, p. 77). Quatro homilias ganham interesse especial, pois abordam os problemas sociais encontrados na sociedade. Nessas homilias: Sobre o Salmo 14, Sobre o rico, Sobre Lucas 12 e Sobre os tempos de fome, “Basílio denunciou os objetivos desumanos dos ricos e clamou por mudanças na ordem social” (SIEPIERSKI, 1995, p.77).
Basílio levanta sua voz contra os exploradores:
Dizeis que não dareis, que não tendes o suficiente para satisfazer aqueles que vos pedem. Vossas línguas juram que não podeis dar, mas vossas mãos refutam isso estrondosamente: pois, embora silenciosas, declaram vosso perjúrio pela pedra do anel que reluz em vosso dedo. Quantos lares arruinados não poderia ele reestabelecer? Somente uma peça de vossas roupas seria suficiente para vestir toda uma pessoa que perece no frio... Sereis excluídos do Reino... Vós não recebereis a vida eterna (apud SIEPIERSKI, 1995, p.81).
Basílio desempenhou a pregação homilética como instrumento de libertação dos pobres e espoliados. Foi por meio do confronto das ações das pessoas com os padrões evangélicos que Basílio exerceu grande e exemplar ministério profético. Sua atividade homilética é, sem dúvida, inspiradora para uma homilia precisa e encarnada na realidade atual.
2. O pregador
A homilia é uma tarefa presidencial, isto é, o próprio Cristo age na pessoa (in persona christi) do ministro que preside a Palavra na celebração. Algumas regras emanadas dos documentos da Igreja são muito claras, dizendo que a homilia “deve ser feita pelo sacerdote celebrante” (IGMR 66), e “por sua importância e natureza, dentro da Missa, está reservada ao sacerdote ou ao diácono” (RS 161).
Há uma condição necessária, um sentido profundo e altamente simbólico que a homilia seja realizada pelo sacerdote. É uma função específica do ministério ordenado proferir a homilia, isto é, constitui o múnus profético conferido a ele pelo Sacramento da Ordem:
“Se Cristo exerce seu múnus sacerdotal de santificar através da Eucaristia e dos demais sacramentos, atua seu múnus profético mediante toda forma de pregação eclesial, especialmente a homilia. Neste sentido, o homiliasta empresta todo seu ser e não somente sua voz para que Cristo fale e se comunique” (HOMEM, 2007, p.96).
Quando o padre está proferindo a homilia, é a Igreja que está falando. O sacerdote não fala por si só, embora as características, dotes e carismas pessoais estão significativamente presentes. Tendo em vista que a homilia assume uma linguagem familiar, o pregador é o pai da comunidade e suscita no coração das pessoas o ânimo para testemunhar Cristo e viver segundo a sua Palavra. O padre, durante a homilia assume um lugar de destaque, a exemplo do patriarca que presidia a palavra nas reuniões judaicas ou, ainda, como os Padres dos primeiros séculos, que exortavam, admoestavam, instruíam, ensinavam e corrigiam na caridade as comunidades cristãs. É o sacerdote que possui por excelência o carisma profético para a edificação da comunidade. Com sua pregação, a comunidade cresce na fé e no conhecimento de Jesus Cristo, testemunhando, pois, o Evangelho. O pregador, com toda prudência e discernimento age profeticamente, denunciando as injustiças presentes no mundo, seja no âmbito político, econômico, social ou religioso; está sintonizado com a realidade social:
A realidade social é imperativa na atualização dos ensinamentos bíblicos. Devem ser considerados dois fatores da realidade: a realidade crônica, que são os estados permanentes de pobreza, de instabilidade sociopolítica, de mentalidade bélica e das injustiças sociais e, mais atentamente, os acontecimentos momentâneos que desestabilizam emocionalmente os fiéis e que, por esta razão, clamam por uma resposta mais precisa e imediata (BOGAZ, 2003, p.88).
O documento Presbyterorum Ordinis afirma sobre a atividade profética dos sacerdotes, que são profundamente inseridos no tempo:
A pregação sacerdotal – não raro dificílima nas circunstâncias hodiernas do mundo, se deseja mover mais convenientemente as mentes dos ouvintes - , não deve expor apenas de modo geral e abstrato a palavra de Deus, mas sim aplicando às circunstâncias concretas da vida a verdade perene do Evangelho (PO 4, p. 499).
2.1 Espiritualidade do pregador
É evidente que por meio da homilia se reflete a concepção teológica do pregador e indica a intensidade espiritual na qual se encontra. Sem uma profunda vida espiritual o pregador corre o risco de perder a abundante graça que o torna apto para a pregação homilética. Se não existir uma esmerada preparação, a homilia se esvazia e não cumpre a sua função profética.
O pregador é chamado a mergulhar nos mistérios da fé, pois a mistagogia consiste justamente em introduzir os fiéis no mistério, portanto, o pregador é o mistagogo que conduz a comunidade às realidades escondidas no encontro sacramental com Cristo. Para isso acontecer, o pregador precisa se envolver do mistério, estar impregnado do mistério para transmití-lo. Daí a necessidade do pregador cultivar uma mística e espiritualidade que sustentem sua atividade profética. É por meio da oração que o sacerdote alimenta sua vida espiritual; em primeiro lugar a Lectio Divina, que é fonte de inspiração para sua pregação homilética.
A espiritualidade do sacerdote é bíblico-patrístico-litúrgica: tem a Palavra de Deus como fonte e alimento espiritual; os Padres da Igreja que são os autênticos intérpretes da Bíblia, vozes da tradição e grandes mestres espirituais; e a Liturgia como vivência e cume de toda espiritualidade sacerdotal.
Utilizando-se apenas de subsídios homiléticos preparados por outras pessoas, o pregador perde a inspiração suscitada pela oração. Não é o estudo de comentários exegéticos que dá suporte para a homilia, mas sim a oração, a meditação da Palavra e a ascese. É a oração pessoal do pregador que confere à homilia seu caráter espiritual, orante e profético. Muitos pregadores recorrem a comentários exegéticos atuais, pré-estabelecidos e se esquecem dos escritos da tradição patrística e da oração pessoal. Os subsídios homiléticos são ferramentas que auxiliam na preparação da homilia, no entanto, não substituem a oração pessoal do pregador.
A oração é imprescindível para o ministério sacerdotal, e a homilia somente pode ser realizada com a oração, que perpassa toda a existência do pregador, principalmente quando a prepara, meditando os textos bíblicos e vivenciando os mistérios de Cristo celebrados na Liturgia. A homilia será profética e orante se preparada no labor da oração.
Ausentando-se a espiritualidade, a homilia se torna mera repetição de palavras pronunciadas sem profundidade, pois o carisma profético se manifesta por meio de uma sintonia para com a vontade de Deus, de intimidade, pois é o próprio Deus que fala e o interlocutor é o sacerdote pregador, que anuncia profeticamente a palavra atualizada e interpretada segundo a tradição bimilenar da Igreja. “Com efeito, o dinamismo ministerial sem uma sólida espiritualidade sacerdotal traduzir-se-ia num ativismo vazio e desprovido de profetismo” (OP 11, p.35).
3. A homilia como anúncio
A caracaterística fundamental da homilia é o fato de ser bíblico-patrístico-litúrgica. Toda a força da Sagrada Escritura e da Tradição é transmitida por meio da homilia. É profética, pois atualiza e dinamiza a Palavra como é entendida e anunciada pela Igreja; esse anúncio “se dirige ao homem, criando assim nele uma convicção que se pode transformar em vida. A fim de que se abra um caminho para o âmago da Palavra bíblica enquanto Palavra de Deus, esta mesma Palavra deve ser antes anunciada para o exterior” (BENTO XVI, 2008).
Daí a necessidade do anúncio da Palavra tocar profundamente o homem e o retirar da superficialidade. Um Deus só pensado e inventado não é um Deus real: “Se Ele não se mostra, não chegamos a Ele de forma alguma. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer agora a todos os povos: Ele mostrou-se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão consiste num fato: Ele mostrou-se” (BENTO XVI, 2008). A finalidade do anúncio é Deus, isto é, a pessoalidade de Deus, que age na história humana. Os cristãos da Igreja primitiva, tendo feito essa experiência, anunciaram com intrepidez o Deus verdadeiro, pois:
não consideraram o seu anúncio missionário como uma propaganda, que devia servir para fazer crescer o próprio grupo, mas como uma necessidade intrínseca que derivava da natureza da sua fé: o Deus em que acreditavam era o Deus de todos, o Deus uno e verdadeiro que se tinha mostrado na história de Israel e, enfim, no seu Filho, dando assim a resposta que dizia respeito a todos e que, no seu íntimo, todos os homens aguardam (BENTO XVI, 2008).
Diante dos desafios hodiernos, a ação evangelizadora da Igreja se realiza, primeiramente, por meio do anúncio (kerygma). Em muitas comunidades eclesiais, o único espaço que favorece o anúncio querigmático é a liturgia, devido às carências da Igreja, principalmente nos meios mais pobres. A homilia assume, então, a característica de anúncio querigmático para muitos fiéis que ainda não tiveram experiência pessoal com Deus: “Em nossa Igreja devemos oferecer a todos os fiéis um encontro pessoal com Jesus Cristo, uma experiência religiosa profunda e intensa, um anúncio querigmático e o testemunho pessoal dos evangelizadores, que leve a uma conversão pessoal e a uma mudança de vida integral” (DA, p.107).
3.1 Conclusão
A homilia nos tempos atuais passou por evoluções e se difere da homilia da época patrística. As homilias dos Santos Padres servem principalmente para a inspiração do pregador e constituem modelos a serem imitados, sendo fonte inexaurível para a pregação homilética, pois é Tradição viva da Igreja. O sacerdote pregador utiliza as homilias dos Padres como fonte de espiritualidade, para realizar bem a atividade homilética, cumprindo o que a Igreja propõe para os dias de hoje, isto é, uma liturgia mais orante, onde se faça silêncio adorante e conduza os fiéis ao mistério celebrado. A homilia sempre termina com uma “proposta de oração” (RATZINGER, 2006, p.155).
Percebe-se que as homilias dos Padres, quando abordam temas sociais e voltadas para a denúncia das injustiças cometidas aos pobres, estão impregnadas de profetismo, constituindo, assim, parte da dimensão profética da homilia. Os Padres ensinam que a dimensão sociotransformadora deve ser inserida na proclamação evangélica, pois “a questão social e o evangelho são entre si inseparáveis” (BENTO XVI, 2006). Essa dimensão profética da homilia não pode reduzir-se à denúncia: “o profeta tem como tarefa primordial o anúncio do Reino. A denúncia é tão somente um aspecto desse anúncio” (D´ANNIBALE, 2005, p.185).
A homilia deve ser muito bem preparada e vivenciada, com espiritualidade, zelo, esmero litúrgico, para que a liturgia cumpra a tarefa de ars celebrandi e para que o sacerdote proporcione o melhor para o povo de Deus. É de extrema relevância, para os dias de hoje, que a homilia seja proferida com clareza, seja orante, mistagógica, e a grande responsabilidade é do sacerdote pregador, que se empenha em tornar a Palavra de Deus mais acessível a todos. A teologia da homilia deve ser muito bem fundamentada, principalmente a sua dimensão profética, que constitui a essência da pregação homilética, tão necessária para a Igreja. É de extrema urgência, proporcionar o estudo da homilética no curso teológico dos candidatos ao sacerdócio, para que desde já, tenham presente a importância da homilia para a vida da Igreja.
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<!--[if !supportFootnotes]-->

<!--[endif]-->
<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> A hermenêutica da continuidade, ou da reforma, foi expressa inicialmente pelo magistério do papa João XXIII, quando convocou o Concílio Vaticano II. Essa hermenêutica é a necessária chave de compreensão e recepção do Concílio, pois segue a continuidade do único sujeito-Igreja, que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo, porém, sempre o mesmo. O papa Bento XVI segue reafirmando a hermenêutica da continuidade como única que não gera a ruptura entre Igreja pré-conciliar e Igreja pós-conciliar.

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