segunda-feira, 8 de março de 2010

"Não primeiro a conversão e depois a salvação, mas primeiro a salvação e depois a conversão". 1ª pregação do Fr. Raniero Cantalamessa


Ministros de uma nova aliança


2010-03-05- Primeira pregação de Quaresma

O Senhor me concede ser testemunha da graça extraordinária que se revela pela Igreja neste ano sacerdotal. São incontáveis os retiros do clero que se realizam em várias partes do mundo, todos animados por um espírito novo e pela redescoberta da própria vocação. Um destes retiros, organizado em Manila pela Conferência Episcopal das Filipinas em janeiro passado, contou com a participação de 5.500 sacerdotes e 90 bispos. Foi, pelas palavras do cardeal de Manila, um novo Pentecostes. Durante um hora de adoração guiada, por convite do pregador, toda aquela imensa multidão de sacerdotes em vestes brancas gritou a uma só voz: “Lord Jesus, we are happy to be your priests”: “Senhor Jesus, estamos felizes por ser seus sacerdotes!”. E se via pelas expressões nos rostos que não eram apenas palavras.

Vivi a mesma experiência, embora com números muito reduzidos, com todo o clero da região de Sabah, na Malásia, em seguida em Cingapura e finalmente no Santuário de Loreto, com cerca de 200 bispos e sacerdotes italianos. Todos me pediram que transmitisse ao Santo Padre seu agradecimento e sua saudação, o que faço com alegria neste momento.

1. Os “mistérios” de Deus

A palavra de Deus que nos guia nestas reflexões para o Ano Sacerdotal é Coríntios 4, 1: “Si nos existimet homo, ut ministros Christi et dispensatores mysteriorum Dei”; “Que as pessoas nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”. Meditamos no Advento sobre a primeira parte desta afirmação: o sacerdote como servidor de Cristo, no poder e na unção do Espírito Santo. Resta-nos, nesta Quaresma, refletir a respeito da segunda parte: o sacerdote como dispensador dos mistérios de Deus. Naturalmente, o que dizemos do sacerdote é ainda mais válido para o bispo, que possui a plenitude do sacerdócio.

O termo “mistérios” tem dois significados fundamentais: o primeiro é de verdades ocultas e reveladas por Deus, os divinos propósitos anunciados veladamente no Antigo Testamento e revelados aos homens na plenitude dos tempos; o segundo é aquele de “sinais concretos da graça”, na prática, os sacramentos. A Carta aos Hebreus reúne estes dois significados na expressão: “os mistérios de Deus” (ta pros ton Theon, ea que sunt ad Deum); acentua o real significado ritual e sacramental, dizendo que a tarefa do sacerdote (o autor se refere aqui ao sacerdócio em geral, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento) é o de “oferecer dons e sacrifícos pelos pecados” (Hb 5,1).

Este segundo significado se afirma principalmente na tradição da Igreja. Santo Ambrósio escreve dois tratados sobre os ritos de iniciação cristã, vistos como o cumprimento de imagens e profecias do Antigo Testamento; um ele intitula de “De sacramentis” e o outro de “De mysteriis”, ainda que ambos tratem do mesmo argumento. Sabe-se, de resto, que o termo sacramentum não é mais que a tradução latina do termo mysterion.

Retornando à palavra do Apóstolo, o primeiro destes dois significados evidencia o papel do sacerdote a respeito da palavra de Deus, e o segundo, seu papel a respeito dos sacramentos. Juntos, delineiam a fisionomia do sacerdote como testemunha da verdade de Deus e como ministro da graça de Cristo, como anunciador e como sacrificador.

Por muitos séculos, a função do sacerdote esteve reduzida quase exclusivamente ao seu papel de liturgo e de sacrificador: “oferecer sacrifícos e perdoar os pecados”. Foi com o Concílio Vaticano II que se evidenciou, para além da função cultual, a função de evangelizador. Em linha com o que a Lumen gentium já havia afirmado sobre a função dos bispos de “ensinar” e “santificar”, a Presbyterorum ordinis escreve:

“Participando, a seu modo, do múnus dos apóstolos, os presbíteros recebem de Deus a graça de serem ministros de Jesus Cristo no meio dos povos, desempenhando o sagrado ministério do Evangelho, para que seja aceita a oblação dos mesmos povos, santificada no Espírito Santo (Rm 15, 16). Com efeito, o Povo de Deus é convocado e reunido pela virtude da mensagem apostólica […]. Com efeito, o seu ministério, que começa pela pregação evangélica, tira do sacrifício de Cristo a sua força e a sua virtude” [1].

Das três meditações de Quaresma, dedicaremos uma ao tema do sacerdote como ministro da Palavra de Deus, uma ao do sacerdote como ministro dos sacramentos, e uma mais existencial, à renovação do sacerdócio mediante a conversão ao Senhor.

2. A letra e o Espírito

A partir do século II nota-se uma tendência muito clara de moldar – nos requisitos, nos ritos, nos títulos, nas vestes – o sacerdócio cristão conforme o levítico do Antigo Testamento [2]; uma tendência que se cristalizará em documentos canônicos como as Costituzioni apostoliche, a Didascalia siriaca e outras fontes similares. É justamente tal assimilação externa que desperta, em ocasiões como esta, uma necessidade urgente de redescobrir a novidade e a alteridade substancial do ministério da nova aliança em relação à antiga. É a enérgica afirmação paulina que gostaria colocar no centro da presente meditação:

“Por nós mesmos, não somos capazes de pôr a nosso crédito qualquer coisa como vinda de nós; a nossa capacidade vem de Deus, que nos tornou capazes de exercer o ministério da aliança nova, não da letra, mas do Espírito. A letra mata, o Espírito é que dá a vida. Se o ministério da morte, gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória que os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito?” (2 Cor 3, 5-8).

O que o Apóstolo pretende ao opor a letra ao Espírito pode ser deduzido a partir do que escreve um pouco acima, ao falar da comunidade do Novo Testamento: “Todo o mundo sabe que sois uma carta de Cristo, redigida por nosso intermédio, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, gravada não em tábuas de pedra, mas em tábuas que são corações humanos” (2 Cor 3, 3).

A letra é, portanto, a lei mosaica escrita sobre tábuas de pedra e, por extensão, toda lei positiva exterior ao homem; o Espírito é a lei interior, escrita sobre os corações, aquela que o Apóstolo define em outra passagem como “a lei do Espírito, que dá a vida no Cristo Jesus, te libertou da lei do pecado e da morte (cf. Rm 8, 2).

Santo Agostinho escreveu um tratado sobre nosso texto – o De Spiritu et littera – que é um marco na história do pensamento cristão. A novidade da nova aliança em relação à antiga, explica ele, reside no fato de que Deus não se limita mais a ordenar ao homem como deve ou não deve se portar, mas realiza ele mesmo com o homem e no homem aquilo que determina. “Onde a lei das obras impera com a ameaça, a lei da fé impetra com o crer... Com a lei das obras Deus diz aos homens: “Faça o que te ordeno”; com a lei da fé o homem diz a Deus: “dai-me o que me ordena” [3]
A lei nova que é o Espírito é muito mais que uma mera “indicação” de uma vontade; é uma “ação”, um princípio vivo e ativo. A lei nova é a vida nova. A oposição letra/Espírito equivale, em são Paulo, à oposição lei/graça: “não estais sob a Lei, mas sob a graça” (Rom 6,14).

Também na Antiga Aliança está presente a ideia de graça, no sentido de benevolência, favor e perdão de Deus (a hesed): “favoreço a quem quero favorecer” (Ex 33, 19); os salmos estão repletos de referências a este conceito. Mas agora a palavra graça, charis, adquiriu um significado novo, histórico: é a graça que provém da morte e ressurreição de Cristo e que justifica o pecador. Não mais apenas uma disposição benevolente, mas uma realidade, um “estado”: “Assim, pois, justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. Por ele, não só tivemos acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes...” (Rm 5, 1-2).

João descreve a relação entre a antiga e a nova aliança do mesmo modo que Paulo: “a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1, 17).

Disso se deduz que a lei nova, ou do Espírito, não é, no sentido estrito, aquela proferida por Jesus no monte das bem-aventuranças, mas sim aquela infundida por ele nos corações em Pentecostes. Os preceitos evangélicos são certamente mais elevados e perfeitos que aqueles da lei mosaica; todavia, por si sós, também estes permaneceriam ineficazes. Se bastasse ter proclamado a nova vontade de Deus através do Evangelho, não seria possível explicar a necessidade de que Jesus tivesse morrido e que viesse o Espírito Santo; não se explica por que o Jesus de João faz com que tudo dependa de sua “elevação”, isto é, de sua morte na cruz (cf. Jo 7, 39; 16, 7-15).

Os apóstolos são a prova viva disso. Estes haviam escutado da viva voz de Jesus todos os preceitos evangélicos, por exemplo que “aquele que quiser ser o primeiro deve fazer de si o último e servo de todos”, mas até o final os vemos preocupados em estabelecer quem seria o maior dentre eles. Somente após a vinda do Espírito é que podemos vê-los completamente esquecidos de si mesmos e comprometidos unicamente em proclamar “as grandes obras de Deus” (cf. At 2, 11).

Assim, sem a graça interior do Espírito, também o Evangelho, o mandamento novo, teria permanecido lei velha, letra. Retomando um pensamento audacioso de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino escreve: “pela letra entende-se qualquer lei escrita que permaneça externa ao homem, incluindo os preceitos morais contidos no Evangelho; de modo que também a letra do Evangelho mataria, se não se acrescentasse, por dentro, a graça da fé que cura”. Ainda mais explícito é o que está escrito um pouco antes: “A lei nova é principalmente a própria graça do Espírito Santo que é concedida aos que creem” [5].

3. Não por constrição, mas por atração

Mas como age, concretamente, esta lei nova que é o Espírito? Age através do amor! A lei nova nada mais é do que aquilo a que Cristo chamou de “um mandamento novo”. O Espírito Santo escreveu a nova lei em nossos corações, infundindo nestes o amor (Rm 5, 5). Este amor é o amor com o qual Deus nos ama e com o qual, contemporaneamente, faz com que nós o amemos e nos amemos uns aos outros. É uma capacidade nova de amar.

Não seria um contra-senso nos referirmos ao amor como uma “lei”? A esta pergunta deve-se responder que existem dois modos pelos quais o homem pode ser induzido a fazer ou não fazer algo: ou por constrição ou por atração. A lei exterior atua pelo primeiro modo, por constrição, com a ameaça de castigo; o amor atua do segundo modo, pela atração. De fato, cada um de nós é atraído por aquilo que ama, sem que se submeta a qualquer constrição exterior. O amor é como um “peso” da alma que a lança em direção ao objeto do próprio deleite, no qual sabe encontrar seu repouso [6]. A vida cristã é vivida por atração, não por constrição.

O amor, portanto, é uma lei, “a lei do Espírito”, no sentido de que cria no cristão um dinamismo que o leva a realizar tudo o que Deus deseja, espontaneamente, porque fez de sua a vontade de Deus e ama tudo o que Deus ama.

Qual o lugar, nos perguntamos, nesta economia do Espírito, da observação dos mandamentos? Também após a vinda de Cristo subsiste ainda a lei escrita: há os mandamentos de Deus, o decálogo, há os preceitos evangélicos; a estes foram acrescentados, em seguida, as leis eclesiásticas. Qual o significado do Código de Direito Canônico, dos regulamentos monásticos, dos votos religiosos e tudo o mais que, em suma, indica uma vontade objetivada que me é imposta do externo? Seriam tais coisas como que corpos estranhos ao organismo cristão?

Houve, no curso da história da Igreja, alguns movimentos que pensaram desse modo e que refutaram, em nome da liberdade do Espírito, qualquer lei, a ponto de serem chamados de movimentos “anomistas”, mas estes foram sempre rejeitados pela autoridade da Igreja e pela própria consciência cristã.

A resposta cristã a esse tipo de problema nos é dada pelo Evangelho. Jesus afirma não ter vindo para “abolir a lei”, mas “para dar-lhe cumprimento” (cf Mt 5, 17). E qual é o “cumprimento” da lei? “O pleno cumprimento da lei” – responde o Apóstolo – “é o amor!” (Rm 13, 10). Do mandamento do amor – diz Jesus – “dependem toda a lei e os profetas” (cf Mt 22, 40).

A obediência se torna, assim, a prova de que se vive sob a graça. “Se me amais, observareis os meus mandamentos” (Jo 14, 15). O amor, desse modo, não substitui a lei, mas a observa, “cumpre-a”. Na profecia de Ezequiel, atribuía-se precisamente ao dom futuro do Espírito do novo coração a possibilidade de observar a lei de Deus: “Porei em vós o meu espírito e farei com que andeis segundo minhas leis e cuideis de observar os meus preceitos” (Ez 36, 27). “A lei foi dada” – escreve Agostinho – “para que se buscasse a graça e a graça foi dada para que se observasse a lei”.

4. Atualidade da mensagem da graça

Concluímos assim a análise das consequências que a mensagem paulina referente à nova aliança pode ter sobre o modo de conceber e viver a vida cristã. Nesta ocasião, gostaria de destacar como este tema pode esclarecer a questão da evangelização do mundo atual e do diálogo inter-religioso, e, consequentemente, o papel do sacerdote como ministro da verdade de Deus.

Agostinho escreveu seu tratado La lettera e lo Spirito para combater a tese pelagiana, segundo a qual para salvar-se é suficiente que Deus nos tenha criado, dotado de livre-arbítrio e nos dado uma lei que indique sua vontade. Na prática, esta é a tese de que o homem pode se salvar por si mesmo e que a vinda de Cristo é, certamente, uma ajuda extraordinária, mas não indispensável para a salvação.

Pode-se discutir – e hoje se discute entre os estudiosos – se o santo teria interpretado corretamente o pensamento do monge Pelágio. Mas isso não deveria nos surpreender. Os Padres que combateram heresias explicitaram (de seu ponto de vista!) quais eram as implicações lógicas de uma certa doutrina, sem levar em consideração o ponto de vista ou a linguagem do adversário. Estavam mais preocupados com a doutrina do que com as pessoas, com a verdade dogmática do que com a verdade histórica. Agostinho, aliás, mostra-se mais respeitoso e cortês no trato com Pelágio do que, por exemplo, Cirilo de Alexandria em seus confrontos com Nestório.

A reavaliação moderna de autores como Pelágio e Nestório não significa de forma alguma uma reavaliação do pelagianismo ou do nestorianismo. Essa distinção contribuiu, em tempos recentes, para o restabelecimento da comunhão com as igrejas assim chamadas nestorianas ou monofisistas do oriente.

Tudo isso, no entanto, nos interessa relativamente. O que é importante ter em mente é que Agostinho tem razão a respeito do problema principal: para salvar-se, não basta a natureza, o livre arbítrio ou o direcionamento da lei: é necessária a graça, isto é, é necessário Cristo. Pensar diferente disso significaria torna supérflua sua vinda, e com ela também sua morte e ressurreição; significaria considerar Cristo um exemplo de vida, mas não “causa de salvação eterna para todos os que nele creem” (Hb 5, 9).

É sobre este ponto que o pensamento de Agostinho – e ainda antes dele o de Paulo – revela-se de uma extraordinária atualidade. Aquilo que, segundo a Apóstolo, distingue a nova da antiga aliança, o Espírito da letra, a graça da lei, feitas as devidas distinções, é exatamente o que distingue hoje o cristianismo de outra religião.

As formas se alteraram, mas a substância é a mesma. “Obra da lei”, ou obra do homem, é qualquer prática humana, quando a essa se condiciona a própria salvação, seja esta concebida como comunhão com Deus, seja como comunhão consigo mesmo e com as energias do universo. O pressuposto é o mesmo: Deus não se doa, é conquistado!

Podemos ilustrar a diferença da seguinte maneira. Cada religião humana ou filosofia religiosa começa dizendo ao homem como proceder para ser salvo: os deveres, as obras – sejam obras exteriores ou caminhos especulativos em direção ao próprio interior – o Tudo ou o Nada. O cristianismo, por sua vez, não começa dizendo ao homem como proceder, mas comunicando o que Deus fez por nós. Jesus não começou a pregar dizendo “Convertam-se e creiam no Evangelho para que o Reino venha até vós”; ao contrário, começou dizendo: “O Reino de Deus está entre vós: convertei-vos e crede no Evangelho”. Não primeiro a conversão e depois a salvação, mas primeiro a salvação e depois a conversão.

Também no cristianismo – como já recordamos – existem os deveres e os mandamentos, mas o plano dos mandamentos, incluído o maior de todos, que é o de amar a Deus e ao próximo, não é o primeiro plano, mas o segundo; o primeiro plano é o do dom, o da graça. “Nós nos amamos porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4,19). É do dom que decorre o dever, e não vice-versa.

Nós, cristãos, não entraremos em diálogo com outras confissões afirmando a diferença ou a superioridade de nossa religião; tal postura representaria a própria negação do diálogo. Insistiremos, alternativamente, nos aspectos que nos unem, nos objetivos comuns, reconhecendo para os outros o mesmo direito (ao menos subjetivo) de considerar sua própria fé como a mais perfeita e a definitiva. Sem esquecer, de resto, que aquele que vive com coerência e boa fé uma religião das obras e da lei é melhor e agrada mais a Deus do que alguém que pertença à religião da graça, mas se priva completamente seja de crer na graça, seja de cumprir as obras da fé.

Tudo isso não deve, entretanto, nos induzir a “colocar entre parênteses” nossa fé na novidade e na unicidade de Cristo. Não se trata tampouco de afirmar a superioridade de uma religião sobre as demais, mas de reconhecer a especificidade de cada uma, de saber quem somos e no que cremos.
Não é difícil explicar o porquê da dificuldade em admitir a ideia de graça e de sua recusa instintiva por parte do homem moderno. Salvar-se “pela graça” implica em reconhecer a dependência de cada um e isso se mostra muito difícil. É bem conhecida a afirmação de Marx: “um ser não se considera independente a menos que seja seu próprio senhor, e ele só o é quando deve sua existência a si próprio. Um homem que vive graças ao favor de outrem deve ser considerado um ser dependente [...]. Mas eu viveria completamente pela graça de um outro, se este houvesse criado minha vida, se este fosse a fonte de minha vida e esta não fosse minha própria criação” [8]. O motivo pelo qual se refuta um Deus criador é o mesmo pelo qual se refuta um Deus salvador.

Esta é a explicação dada por São Bernardo para o pecado de Satanás: este preferiu ser a mais infeliz das criaturas por mérito próprio, ao invés de ser a mais feliz pela graça de outro; preferiu ser “infeliz mas soberano”, ao invés de ser feliz mas dependente: misere praeesse, quam feliciter subesse [9].

A rejeição do cristianismo em certos níveis de nossa cultura ocidental, quando não é rejeição à Igreja e aos cristãos, é rejeição à própria graça.

5. “Nós pregamos Cristo Jesus Senhor nosso”

Qual é, neste tempo, a tarefa dos sacerdotes enquanto administradores dos mistérios de Deus e mestres da fé? O de ajudar os irmãos a viver a novidade da graça, que é como dizer a novidade de Cristo.

Jesus no Evangelho utiliza a expressão “os mistérios do Reino dos céus” para indicar todo seu ensinamento e, em particular, o que se refere a sua pessoa (cf. Mt 13, 11). Após a Páscoa se passa cada vez mais frequentemente do plural ao singular, dos mistérios ao mistério: todos os mistérios de Deus se resumem já no mistério que é Cristo.

São Paulo fala do “mistério de Deus, quer dizer, Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Col 2, 2-3). Convida-nos a pensar em Cristo como em um palácio, em que, conforme alguém adentra, vai de maravilha em maravilha. O universo material, com todas as suas belezas e sua incalculável extensão, é a única imagem adequada do universo espiritual que é Cristo. Não por nada este se fez “por meio dele e para ele” (Col 1,16).

O apóstolo assinalou com mais clareza que ninguém o centro e o coração do anúncio cristão e o expressou de forma programática, a modo de manifesto: “Nós pregamos a Cristo crucificado” (1 Cor 1, 23) e “nós não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus Senhor nosso” (2 Cor 4,5). Estas palavras justificam plenamente a afirmação segundo a qual o cristianismo não é uma doutrina, mas uma pessoa.

Mas o que significa, na prática, pregar a “Cristo crucificado” ou “Cristo Jesus, Senhor nosso”? Não significa falar sempre e só do Cristo do kerygma ou do Cristo do dogma, quer dizer, transformar as pregações em lições de cristologia. Significa “recapitular tudo em Cristo” (Ef 1,10), fundar todo dever nele, fazer servir cada coisa ao objetivo de levar os homens ao sublime conhecimento de Cristo Jesus Senhor nosso” (Fil 3, 8).

Jesus deve ser o objeto formal, não necessariamente e sempre o objeto material, da pregação, o que a “informa”, o que lhe dá fundamento e dá autoridade a qualquer outro anúncio, a alma e a luz do anúncio cristão. “Árido é todo alimento da alma – exclama São Bernardo – se não está regado com este sal. O que escreves não tem sabor – non sapit mihi – se não palpita dentro o coração de Jesus” [10].

Na liturgia das horas em língua alemã, o Stundengebet, há um hino (Laudes de terça-feira da segunda semana) que me ficou querido desde o primeiro momento em que o recitei. Começa assim: Göttliches Wort, der Gottheit Schrein, für uns in dein Geheimnis ein. “Verbo eterno, Deus vivo e verdadeiro, faz-nos penetrar em teu mistério”. A expressão “o mistério de Cristo” é a mais compreensiva de todas: recolhe em seu ser e no seu atuar sua humanidade e sua divindade, sua preexistência e sua encarnação, as profecias do Antigo Testamento e sua realização na plenitude dos tempos. Podemos repeti-lo com uma jaculatória: “Verbo eterno, Deus vivo e verdadeiro, faz-nos penetrar em teu mistério”

[Tradução de Paulo Marcelo Silva]

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[Notas originais em italiano]

1) PO, 2.
2) Cf. J.-M. Tillard, “Sacerdoce”, in DSpir. 14, col.12.
3) Agostino, De Spiritu et littera, 13,22.
4) Tommaso d’Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
5) Ibid., q. 106, a. 1; cf. Agostino, De Spiritu et littera, 21, 36.
6) Agostino, Commento al Vangelo di Giovanni, 26, 4-5: CCL 36, 261; Confessioni, XIII, 9.
7) Agostino, De Spir. et litt. ,19,34.
8) C. Marx, Manoscritti del 1844, in Gesamtausgabe, III, Berlino 1932, p. 124 e Critica della filosofia del diritto di Hegel, in Gesamtausgabe, I, 1, Francoforte sul M. 1927, p. 614 s.
9) Bernardo di Chiaravalle, De gradibus humilitatis, X, 36: PL 182, 962.
10) Bernardo di Chiaravalle, Sermones super Canticum, XV, 6: Ed. Cistercense, Roma 1957, p.86.

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