segunda-feira, 19 de abril de 2010

Pena de morte?




Em síntese: O recrudescimento da criminalidade em nossos dias tem suscitado em vários pensadores o anseio de que se introduza a pena de morte no Brasil; seria fator coibitivo da onda de violência que flagela a nossa sociedade: ou morrem os iníquos ou morrem os inocentes, dizem os apologistas da sentença capital. – Quando se referem à doutrina da Igreja neste particular, os autores nem sempre a interpretam corretamente. Na verdade, a Igreja não repudia a pena de morte como tal ou abstratamente falando; Ela julga que pode ser um ato de legítima defesa da sociedade contra injustos agressores, que não poderiam ser evitados de outra forma. Todavia note-se que, para afirmar a validade da sentença capital neste ou naquele país, em dado momento histórico, é preciso ter conhecimentos exatos das condições de vida do respectivo povo; ora tais noções fogem à alçada da Igreja e vêm a ser da competência dos peritos em ciências humanas. Por isto a Igreja não propugna nem condena a pena de morte na realidade concreta dos povos, mas pede aos peritos que avaliem as situações com objetividade e sem paixões.
A problemática da pena de morte é calorosamente discutida em nossos dias. A recrudescência do terrorismo e da criminalidade leva muitos autores a postular a sua implantação imediata nas legislações em que não existe; para tanto recorrem aos mais diversos argumentos. Ao contrário, outra corrente de pensadores recusa tal posição, afirmando que é não apenas desnecessária, mas também injusta a própria pena de morte.
De ampla bibliografia que sobre o assunto existe, vamos apresentar sumariamente dois livros, que envolvem a Igreja nessa problemática, nem sempre concordando entre si neste particular. A seguir, exporemos com objetividade o pensamento da Moral católica.
1. Pena de Morte Já”Pelo Pe. Emílio Silva
O Pe. Emílio Silva de Castro é benemérito a muitos títulos: Decano da Faculdade de Direito da Universidade Gama Filho, Catedrático da Universidade do Estado da Guanabara, Catedrático da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro… Com especial interesse vem estudando nos últimos anos a questão da pena de morte, resultando daí o livro “Pena de Morte Já”.¹
A obra é exaustiva, pois aborda o assunto sob todos os aspectos: tanto fornece as razões em prol da pena de morte refuta os contra-argumentos levantados pelos abolicionistas. Assim quem deseje conhecer a problemática e a respectiva discussão, encontrará em tal livro o que procura, exposto com muita erudição, vários dados estatísticos, numerosas citações de autores antigos e modernos.
A viga-mestra da obra consiste em dizer que a pena de morte coíbe a criminalidade; dissuade os malfeitores de cometer seus erros, intimando-os e promovendo a tutela dos inocentes. Põe freqüentemente o dilema: ou morrem os homicidas iníquos ou morrem os inocentes; ora, para que não pareçam estes, aqueles têm que ser drasticamente eliminados.
Proposta a tese, o autor examina as objeções em contrário, dentre as quais sobressai a seguinte: “A pena de morte não exerce nenhum efeito dissuasório da delinqüência” (p. 79). A esta afirmativa o Pe. Emílio Silva responde citando estatísticas realizadas em diversos países da Europa e da América que aboliram a pena de morte. Entre outros, citamos os dados referentes à Inglaterra:
“Abolida a pena de morte em 1968, a criminalidade tomou um incremento muito considerável. No ano seguinte ao da abolição, o número de assassinatos duplicou. Estudos efetuados pelo Ministério do Interior indicam que o país está diante de um sério perigo se não foram estabelecidas imediatamente medidas enérgicas para corrigir a situação. Os crimes a mão armada aumentaram em uns 40% a partir da abolição” (p. 82).
Na base deste e de outros vários testemunhos, o autor julga que “as leis da psicologia humana, as estatísticas, os ensinamentos da história incutem categoricamente a força dissuasória da pena de morte”. “Enquanto se suprime de fato ou de direito a pena de morte, os crimes aumentam em proporções aterradoras; e, ao contrário, quando se aplica de fato, esteja ou não estabelecida de direito, baixam na mesma proporção” (citação de Davi Núnez, La Pena de Muerte frente a la Iglesia y al Estado, 2ª ed. Buenos Aires, 1970, p. 47):
Quanto ao Brasil, o autor escreve longas páginas (98-123) analisando os efeitos da não aplicação da pena de morte:
“Nas Américas, o Brasil, que, na boca de muitos de seus representantes da política ou das letras, se gloria da abolição, apresenta um índice de criminalidade desconcertante pela magnitude, que possivelmente o coloca na primeira linha da triste estatística da delinqüência entre os países da América” (p. 98).
Uma das fortes razões para não haver pena de morte no Brasil seria a índole sentimental do povo brasileiro. Segundo o Dr. Rocha Lagoa, Juiz de Menores, o instituto da pena capital “choca profundamente o sentimento brasileiro e é contra a formação do nosso povo” (citado às pp. 101s). O periódico O GLOBO afirmava solenemente em um editorial: “A implantação da pena capital não se coaduna com o sentimento do povo brasileiro” (p. 102).
Todavia o Pe. Emílio cita inquéritos efetuados junto à opinião pública a respeito da introdução da pena de morte. “Talvez o mais sério e cuidadoso tenha sido o realizado há três anos pela LPM-Burque e Manchete no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre pessoas de 18 a 55 anos, de todas as classes sociais, respeitada a proporcionalidade dessas classes e idades, de acordo com o último censo. À pergunta, entre outras muitas, “Parece-lhe que no Brasil deveria haver pena de morte?” a grande maioria – 79% - respondeu afirmativamente” (p. 109).
O autor enfatiza outrossim o aumento da criminalidade entre nós, citando manchetes de jornais e estatísticas significativas; cf. pp. 114-123.
Ao tratar da posição da Igreja frente à pena de morte, o autor dá a entender que a liceidade da mesma corresponde ao ensinamento da Igreja até os últimos decênios; principalmente após o Concílio do Vaticano II (1962-65) levantaram-se vozes de teólogos e pensadores católicos em sentido contrário. Esses testemunhos estariam destoando de quando ensina o magistério da Igreja. A tal ponto o Pe. Emílio identifica a liceidade (ou mesmo a necessidade) da pena de morte com a doutrina da Igreja. Ver pp. 45-47.
Passemos agora a outra obra notável sobre o mesmo assunto.
2. “O Direito de Viver e a Pena de Morte”por B. Alves Barbosa
Trata-se de um estudo do Dr. Benedito Alves Barbosa, Bacharel em Direito pela pontifícia Universidade de Campinas (SP).¹ Traz o prefácio do Dr. Alberto Marinho Júnior, Juiz do Primeiro Tribunal da Alçada Civil de São Paulo. Defende com veemência a implantação da pena de morte no Brasil, também recorrendo a farta documentação, inclusive bíblica e religiosa. A tese do livro é formulada à p. 80: “A pena de morte, até o crime, é um instrumento indispensável para garantir a inviolabilidade do direito de viver. A prática habitual de delinqüir, indubitavelmente, é uma hedionda ofensa à dignidade humana. A dignidade humana não se evoca para beneficiar abomináveis transgressores dos direitos fundamentais do homem. Para dizermos que a pena de morte depõe contra a dignidade humana, antes devemos admitir que o vício do assassinato seja um mal insignificante para caracterizar ofensa a tão nobre questão. O criminoso não tem o privilégio de arrogar-se a dignidade humana e expropriar os seus semelhantes do direito de viver” (p. 80).
O autor diz enfaticamente: “O direito de viver é inviolável, salvo para garantir a sua própria inviolabilidade” (p. 85).
Os criminosos inveterados são irrecuperáveis. Quem se compadece deles, deixando-os em vida, prejudica a sociedade; têm feito correr rios de sangue sobre toda a face da terra…
“A dor alheia, para os marginais, é motivo de galhofa. Se há algo com que não devemos contar dentre os marginais, é o virtual arrependimento. O arrependimento é uma virtude que não se acha naqueles que, sem motivo, conscientemente cometem crimes capitais contra a vida humana” (pp. 78s).
Segundo o Prof. Benedito, “nem mesmo Deus interessou-se em regenerar os transgressores da lei, os desertores da fé e os adoradores de ídolos fundidos artificialmente” (p. 76). E cita textos bíblicos, que o autor julga aptos a fundamentar tal tese: Ex 32,27s; Nm 14,36-38; 16,31—35; 31,7s; Dt 7,1s; Js 6,20s; 7,24s; 10,9-11; 12,7-24; 1Rs 31, 3-6; 2Rs 24,15; Ap 21,8; 22,15s…
Mais: o leitor não pode deixar de ficar impressionado com os dizeres da p. 80, em que se lê: “Os marginais devem sofrer tanto nas prisões como fora destas… A partir do momento em que os marginais passarem a receber tratamento digno do ser humano, indubitavelmente os delitos nos meios sociais multiplicar-se-ão, pois os criminosos não precisam de motivos para os seus crimes, e o tratamento no cárcere ou dentre a sociedade será uma razão fundamental para instigar os delinqüentes à criminalidade. Penalista nenhum ignora o fato de que o marginal, ao obter a liberdade…, apressa-se a reincidir em seus crimes para voltar ao cárcere e, apesar do meu trato que aí recebe, continuar sua vida de presidiário. Atualmente o homem, para se beneficiar de resultados materiais, ainda que insignificantes, despreza a honra, a dignidade humana, o bom senso…” (p. 80).
Ao falar do Cristianismo, o Dr. Benedito julga que “a Igreja se manifesta imperativamente contra a pena de morte. Destarte a Igreja nega aos filhos de Deus não só o direito de se defenderem do mal, mas também o direito de, neste sentido, serem defendidos pelas instituições penais do Estado. Para a Igreja, os filhos de perdição podem matar; os filhos de Deus devem aceitar ser mortos por mãos profanas; os direitos fundamentais do homem, perante Deus, não contêm o direito de sobrevivência às perversidades dos filhos do demônio. A Igreja quer as coisas assim” (pp. 19s).
Registramos esta posição do Prof. Benedito, antitética à do livro do Pe. Emílio no tocante à sentença da Igreja porque revela bem quanto são confusas as opiniões a respeito da pena de morte e dos ditames da consciência cristã neste particular. Como freqüentemente acontece, as discussões se tornam acaloradas por causa de mal-entendidos nas mentes dos que debatem.
Eis por que agora passamos a uma consideração serena e objetiva de
3. A posição da Igreja
Distingam-se duas etapas de raciocínio: 1) legítima defesa do indivíduo; 2) legítima defesa da sociedade.
3.1. Legítima defesa do indivíduo
A Moral católica ensina que, se alguém é injustamente agredido e corre sério perigo de ser assassinado, tem o direito de matar seu agressor antes que este o mate. Tal é o estatuto da legítima defesa.
Esta norma se apoia no princípio de que o injusto agressor perde o direito à sua vida; se não há outro meio de escapar dele, à pessoa acredita é lícito matá-lo, pois o Evangelho não deve ser pretexto para que os bons se entreguem aos maus; o Cristianismo não é a escola de capitulação diante da iniqüidade, de sorte que o cristão a deixaria campear, a título de ser bom cristão. Quando Jesus diz que é preciso apresentar a face esquerda a quem esbofeteia a direita (cf. Mt 5, 39), está usando de uma hipérbole, das quais há muitas no sermão da montanha (Mt 5-7; cf. Mt 5, 29s; 5,40. 48). Aliás, o próprio Jesus, esbofeteado, não apresentou a outra face ao seu carrasco, mas perguntou-lhe (como que para fazê-lo tomar consciência do mal cometido): “Se falei mal, dá testemunho do mal; mas, se falei bem, por que me bates?” (Jo 19, 23). Também São Paulo foi espancado na boca, por ordem do Sumo Sacerdote judeu Ananias; ao que ele replicou: “Deus vai ferir-te a ti, parede caiada! Tu te sentas para julgar-me segundo a Lei e, violando a Lei, ordenas que me batem?” (At 23,3). Estas considerações bem mostram que está equivocado o Dr. Benedito Alves Barbosa na interpretação da doutrina do Evangelho sobre o amor aos inimigos.
O princípio de legítima defesa, que é válido para todo indivíduo em caso de extrema emergência, aplica-se também à sociedade. Donde o subtítulo
3.2. Legítima defesa da sociedade
A sociedade ameaçada por malfeitores altamente perniciosos pode ser comparada a um indivíduo injustamente agredido. Em conseqüência, o que é lícito a este, vem a ser lícito àquela. Assim se legitima a pena de morte. A Moral cristã, baseada neste raciocínio, reconhece em princípio a liceidade da sentença capital. Esta, aliás, era praticada no Antigo Testamento, sob a Lei de Moisés.
É de notar, porém, que, quando no Antigo Testamento Deus ordena sejam punidos com a morte homens delinqüentes – israelitas ou pagãos -, não está condenando ao inferno ou à ruína definitiva esses indivíduos. O Antigo Testamento vem a ser a lenta pedagogia de Deus em relação a um povo rude, “de dura cerviz” (cf. Ez 3,7), para o qual só tinham eficácia severas demonstrações de justiça. Estas tinham seu valor educativo para a coletividade; a criança entende melhor as atitudes claras e fortes do seu mestre do que argumentos de elevada filosofia. Quanto aos indivíduos assim punidos, é de crer que o Senhor Deus lhes haja oferecido a graça do arrependimento antes da morte, pois Deus nunca abandona a criatura (embora possa ser por esta abandonado). No Antigo Testamento os procedimentos pedagógicos eram diversos daqueles que hoje são oportunos; certas medidas drásticas tinham sua justificativa, mas não podem ser sempre tomadas como padrões para a conduta dos cristãos.
Voltando aos tempos atuais, observemos bem: não é fácil a um cristão averiguar se na vida complexa de uma sociedade a pena capital é realmente o recurso único e necessário para diminuir a criminalidade. A solução que aflora com certa clareza na situação de um indivíduo injustamente agredido, não se impõe com a mesma clarividência quando se considera o caso de uma sociedade atacada por criminosos e homicidas renitentes. – Apesar do que proclamam os arautos da pena de morte, pode-se perguntar:
1) Será que tal punição é realmente medicinal para a sociedade? É meio apto a conter os criminosos e diminuir a onda de crimes nas sociedades modernas? Parece que o medo da morte hoje em dia não é suficiente para desviar do crime os malfeitores.
2) A técnica psicológica moderna não teria recursos para obter certa recuperação dos assassinos inveterados?
3) A prisão perpétua não seria punição da eficácia igual à da pena de morte, com a vantagem de poupar vidas humanas?
4) Não será que os tribunais podem algumas vezes errar condenando alguém à morte?
Há quem recuse valor a tal questionamento e, por isto, se defina incondicionalmente pela pena de morte. Há. Porém, aqueles que julgam tais perguntas suficientes para solapar a necessidade da sentença capital. Quem está com a razão? Quem tem as melhores intuições no caso? Visto que se trata de assunto prático e extremamente complexo, é difícil responder. Poderá haver situações e momentos em que a pena de morte será salutar para determinada sociedade, como também poderá acontecer que a mesma sociedade já não veja o porquê da pena de morte. Entende-se que, sendo tal a problemática, podem tornar-se intermináveis os debates sobre a mesma.
Em conseqüência, não se deveria identificar a doutrina da Igreja com alguma das duas sentenças. Em síntese: a Igreja não repudia a pena de morte como tal ou abstratamente falando, mas Ela não pode afirmar se, nestas ou naqueles circunstâncias históricas concretas, tal medida é ou não salutar para algum país. Quem deve proferir a sentença concreta, são os peritos de ciências humanas e sociais que se debruçam atentamente sobre as características do país em foco; procurem pôr de lado qualquer emoção ou paixão e ponderar com objetividade as exigências do bem comum.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”D. Estevão Bettencourt, osb.Nº 298 – Ano 1987 – Pág. 133.
¹ Revista Continente Editorial Ltda., Av. 13 de maio 23/20º, sala 2025, Rio de Janeiro (RJ) 1986, 218 pp. O livro já foi publicado na Espanha e no México, estando em preparo a edição italiana.¹ editora Julex Livros Ltda. Biblioteca e Livraria Jurídica, Rua Dr. Quirino, 1551, C. p. 326, Campinas (SP) 1985, 175pp.

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